Annamélia
Márcio Sampaio / (Artes Plásticas / Suplemento Literário / 05/07/1969)
Márcio Sampaio / (Artes Plásticas / Suplemento Literário / 05/07/1969)
A indicação para prêmio de aquisição no III Salão de
Ouro Preto e o primeiro prêmio de gravura no Salão da Alliance Française
recentemente realizado em Belo Horizonte, trouxeram à baila o nome de
Annamélia. Gravadora e desenhista é bem conhecida, mas avessa ao grupismo e à
publicidade, preferindo sempre trabalhar silenciosamente muitas vezes
negando-se a participar dos salões. Somente no fim do ano passado é que
resolveu mandar seus trabalhos para o Salão Municipal do qual participou com
destaque tornando-se uma das boas surpresas apresentadas por aquele certame. Em
abril, apresentou no Salão de Ouro Preto (certame de âmbito nacional) suas
novas gravuras com as quais obteve em prêmio de aquisição. Mas o nosso ver ( e
nesse ponto concordamos com o crítico Morgan Motta que escreveu a respeito na
sua coluna do "Diário da Tarde") Annamélia deveria receber o prêmio
maior visto serem suas gravuras a melhor coisa apresentada no Salão, muitos
furos acima daquela gravura que obteve o primeiro prêmio. Já no Salão da
Alliance Française, fez-se justiça à artista concedendo-lhe o júri o primeiro
prêmio de gravura. Seus três trabalhos demonstram a maturidade da artista, sem
dúvida nenhuma, dos melhores gravadores de Minas.
Annamélia não teve uma iniciação muito feliz, tendo
aprendido gravura e desenho (aprendido, não é bem o termo) na Escola de Belas
Artes da UFMG, nos tempos heróicos em que esta era ligada à Faculdade de
Arquitetura. Terminando o curso, passou a residir em Lagoa Santa e mais tarde
em Ouro Preto. Trabalho sozinha na xilogravura e na gravura em metal,
aprendendo consigo mesma, à força de muita pesquisa e paciente trabalho, fixou-se
na xilogravura. Nesta época particiopou de algumas poucas exposições e Salões,
obtendo, porém prêmios importantes. Os três anos que passou em Ouro Preto foram
tremendamente importantes e decidiram na sua "carreira" de gravadora.
Não há artista que, morando na vela Vila Rica, não se deixe impregnar daquela
atmosfera sombria, do barroco apaixonado, de suas igrejas e de sua topografia.
A matéria está viva pronta a ser trabalhada, e os artistas os mais modernos ou
os mais tradicionais não têm como fugir dessa amável solicitação.
Annamélia criou algumas obras de grande beleza tendo
como inspiração as coisas de Ouro Preto. São famosos os seus anjos (os próprios
filhos feiro anjos) desenhados ou gravados que ela expôs na Galeria Guignard
(1965). Toda a poesia e uma ternura comovente impregnam aquelas formas que
nasceram (como nasceram no século do ouro) do Amor. Estas suas gravuras (assim
como os desenhos desta época) são um capítulo especial na obra da artista.
Delas nasce uma fonte de pura e serena água, uma luminosidade que nos lava.
Annamélia conseguiu usar o tema sem se deixar corromper pelo que de fácil
apresenta, pelo falso lirismo ou pelo apelo ao sentimental. Ao
contrário, ela soube somar à imagem barroca daqueles anjos, uma nova dimensão
que lhe deu - quer pela composição apaixonada, que pelo elemento poético
suficientemente atual na forma - uma nova carga que transcende ao modelo para
exprimir-se em liberdade uma encenação nova e sempre consequente. Da mesma
maneira, Annamélia desenho e gravou as paisagens de Ouro Preto, mu ..... ca,
porém, deixando-se domar pela “beleza” exterior, mas sempre acrescentando à
paisagem uma nota pessoal e lhe dando nova vida.
Esse trabalho Annamélia
continuou até 1966, quando vindo para Belo Horizonte, (quando passou a ensinar
xilogravura na Escola Guignard) iniciou uma nova fase com a atenção voltada
para um outro lirismo inspirado na música popular brasileira. Era ainda uma
dependência ao tema (mas uma completa independência de invenção formal) como
antes, quando se prendia à paisagem ou a certos detalhes de arte barroca de
Minas.
Na fase das canções
brasileiras, Annamélia dirigia-se a outro círculo de vigência, fazendo o re-retrato das paixões, das dores, das
alegrias, do lirismo brasileiro. Formalmente, permaneciam o ritmo e a
composição barroca e, como era de se prever, iniciava uma caminhada para uma
surrealidade, para o fabuloso. Sempre presa à sua realidade e ao seu mundo,
deixava-se porém voar, aumentando cada vez mais a metragem desse cordão
umbilical que prende cada ser à sua terra, à inspiração e experiências
primeiras. Em João Bobo, Mané Fogueteiro e a Banda, a inocência marcava a
continuidade das antigas gravuras, bem como o sublime de Chão de Estrelas, mas
em Roda Viva dá uma guinada e conduz seu trabalho para “o outro lado da
realidade” o dramático que se reforça na contundência do corte, na composição
mais expressionista, acentuando o caráter trágico, levando a artista a reformular seu trabalho e iniciar
uma nova fase (meados de 1968).
AS CARTAS NA MESA
Nas primeiras obras desta sua
mais recente fase de trabalho, Annamélia mostrava-se ainda presa a certos temas
da mpb, mas em pouco deixou-se desligar de tudo para uma corrida em completa
liberdade, sem elo com quaisquer discursos antes conhecidos. Iniciou então um
trabalho fundamente mental, elaborando as bases de um jogo, que aos poucos, se
vai transformando numa partida de qualidade “nobre” de reis e damas, numa
feérica dominação de alta inventividade em que a intuição e os transbordamentos
líricos deixam lugar ao pensamento fino e sutil, ao raciocínio e à prática
intelectual do lúdico e do geométrico. Há contudo uma expressão interior a que
não podemos deixar de referir: a busca de uma correlação entre o intelectual e
o emocional, logo contida, porém, pela medida geométrica modular e pelo estudo
dos efeitos de cromatismo ou reflexão de luz, quase científico. As cartas de
Roda Viva cederam lugar a outras cartas, aos módulos que compõem uma nova
canção, mas uma canção da era da eletrônica e do computador. Sobrevive no
entanto, as marcas de sua profunda paixão pela vida, a vida que a arte lhe pode
perpetuar; esta paixão se imprime nas formas interiores estampadas, nos grandes
relevos brancos que testemunham o trabalho da goiva – isto sim, a permanência
do vigor, da vitalidade, da paixão, do trabalho, da busca de compreensão da
vida interior e da própria essência da matéria que trabalha. Configuram-se,
emolduradas pela forma geométrica dos planos modulares e da composição destes
módulos na grande folha branca, expressões poéticas apresentadas por um
processo inovador, pela montagem de “cartas” de valor semântico e codificáveis,
numa sucessão de contrastes e cortes (sempre a dualidade: bem/mal, vida/morte,
homem/mulher, claro/escuro) que a medida que se desenvolvem vão ganhando
relevos ou se perdendo na linha do matiz que busca, no final, o asseptismo do
branco, vale dizer: a ascese.
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