segunda-feira, 17 de setembro de 2018


Annamélia 
Márcio Sampaio / (Artes Plásticas / Suplemento Literário / 05/07/1969)

     A indicação para prêmio de aquisição no III Salão de Ouro Preto e o primeiro prêmio de gravura no Salão da Alliance Française recentemente realizado em Belo Horizonte, trouxeram à baila o nome de Annamélia. Gravadora e desenhista é bem conhecida, mas avessa ao grupismo e à publicidade, preferindo sempre trabalhar silenciosamente muitas vezes negando-se a participar dos salões. Somente no fim do ano passado é que resolveu mandar seus trabalhos para o Salão Municipal do qual participou com destaque tornando-se uma das boas surpresas apresentadas por aquele certame. Em abril, apresentou no Salão de Ouro Preto (certame de âmbito nacional) suas novas gravuras com as quais obteve em prêmio de aquisição. Mas o nosso ver ( e nesse ponto concordamos com o crítico Morgan Motta que escreveu a respeito na sua coluna do "Diário da Tarde") Annamélia deveria receber o prêmio maior visto serem suas gravuras a melhor coisa apresentada no Salão, muitos furos acima daquela gravura que obteve o primeiro prêmio. Já no Salão da  Alliance Française, fez-se justiça à artista concedendo-lhe o júri o primeiro prêmio de gravura. Seus três trabalhos demonstram a maturidade da artista, sem dúvida nenhuma, dos melhores gravadores de Minas.
     Annamélia não teve uma iniciação muito feliz, tendo aprendido gravura e desenho (aprendido, não é bem o termo) na Escola de Belas Artes da UFMG, nos tempos heróicos em que esta era ligada à Faculdade de Arquitetura. Terminando o curso, passou a residir em Lagoa Santa e mais tarde em Ouro Preto. Trabalho sozinha na xilogravura e na gravura em metal, aprendendo consigo mesma, à força de muita pesquisa e paciente trabalho, fixou-se na xilogravura. Nesta época particiopou de algumas poucas exposições e Salões, obtendo, porém prêmios importantes. Os três anos que passou em Ouro Preto foram tremendamente importantes e decidiram na sua "carreira" de gravadora. Não há artista que, morando na vela Vila Rica, não se deixe impregnar daquela atmosfera sombria, do barroco apaixonado, de suas igrejas e de sua topografia. A matéria está viva pronta a ser trabalhada, e os artistas os mais modernos ou os mais tradicionais não têm como fugir dessa amável solicitação.
     Annamélia criou algumas obras de grande beleza tendo como inspiração as coisas de Ouro Preto. São famosos os seus anjos (os próprios filhos feiro anjos) desenhados ou gravados que ela expôs na Galeria Guignard (1965). Toda a poesia e uma ternura comovente impregnam aquelas formas que nasceram (como nasceram no século do ouro) do Amor. Estas suas gravuras (assim como os desenhos desta época) são um capítulo especial na obra da artista. Delas nasce uma fonte de pura e serena água, uma luminosidade que nos lava. Annamélia conseguiu usar o tema sem se deixar corromper pelo que de fácil apresenta, pelo falso lirismo ou pelo apelo ao sentimental. Ao contrário, ela soube somar à imagem barroca daqueles anjos, uma nova dimensão que lhe deu - quer pela composição apaixonada, que pelo elemento poético suficientemente atual na forma - uma nova carga que transcende ao modelo para exprimir-se em liberdade uma encenação nova e sempre consequente. Da mesma maneira, Annamélia desenho e gravou as paisagens de Ouro Preto, mu ..... ca, porém, deixando-se domar pela “beleza” exterior, mas sempre acrescentando à paisagem uma nota pessoal e lhe dando nova vida.
    Esse trabalho Annamélia continuou até 1966, quando vindo para Belo Horizonte, (quando passou a ensinar xilogravura na Escola Guignard) iniciou uma nova fase com a atenção voltada para um outro lirismo inspirado na música popular brasileira. Era ainda uma dependência ao tema (mas uma completa independência de invenção formal) como antes, quando se prendia à paisagem ou a certos detalhes de arte barroca de Minas.
     Na fase das canções brasileiras, Annamélia dirigia-se a outro círculo de vigência, fazendo o re-retrato das paixões, das dores, das alegrias, do lirismo brasileiro. Formalmente, permaneciam o ritmo e a composição barroca e, como era de se prever, iniciava uma caminhada para uma surrealidade, para o fabuloso. Sempre presa à sua realidade e ao seu mundo, deixava-se porém voar, aumentando cada vez mais a metragem desse cordão umbilical que prende cada ser à sua terra, à inspiração e experiências primeiras. Em João Bobo, Mané Fogueteiro e a Banda, a inocência marcava a continuidade das antigas gravuras, bem como o sublime de Chão de Estrelas, mas em Roda Viva dá uma guinada e conduz seu trabalho para “o outro lado da realidade” o dramático que se reforça na contundência do corte, na composição mais expressionista, acentuando o caráter trágico, levando a  artista a reformular seu trabalho e iniciar uma nova fase (meados de 1968).

AS CARTAS NA MESA

    Nas primeiras obras desta sua mais recente fase de trabalho, Annamélia mostrava-se ainda presa a certos temas da mpb, mas em pouco deixou-se desligar de tudo para uma corrida em completa liberdade, sem elo com quaisquer discursos antes conhecidos. Iniciou então um trabalho fundamente mental, elaborando as bases de um jogo, que aos poucos, se vai transformando numa partida de qualidade “nobre” de reis e damas, numa feérica dominação de alta inventividade em que a intuição e os transbordamentos líricos deixam lugar ao pensamento fino e sutil, ao raciocínio e à prática intelectual do lúdico e do geométrico. Há contudo uma expressão interior a que não podemos deixar de referir: a busca de uma correlação entre o intelectual e o emocional, logo contida, porém, pela medida geométrica modular e pelo estudo dos efeitos de cromatismo ou reflexão de luz, quase científico. As cartas de Roda Viva cederam lugar a outras cartas, aos módulos que compõem uma nova canção, mas uma canção da era da eletrônica e do computador. Sobrevive no entanto, as marcas de sua profunda paixão pela vida, a vida que a arte lhe pode perpetuar; esta paixão se imprime nas formas interiores estampadas, nos grandes relevos brancos que testemunham o trabalho da goiva – isto sim, a permanência do vigor, da vitalidade, da paixão, do trabalho, da busca de compreensão da vida interior e da própria essência da matéria que trabalha. Configuram-se, emolduradas pela forma geométrica dos planos modulares e da composição destes módulos na grande folha branca, expressões poéticas apresentadas por um processo inovador, pela montagem de “cartas” de valor semântico e codificáveis, numa sucessão de contrastes e cortes (sempre a dualidade: bem/mal, vida/morte, homem/mulher, claro/escuro) que a medida que se desenvolvem vão ganhando relevos ou se perdendo na linha do matiz que busca, no final, o asseptismo do branco, vale dizer: a ascese.

Nenhum comentário:

Postar um comentário